Ela foi uma mulher que amei. Não foi a primeira nem a última. Não foi a mulher.
Era bonita antes que me apaixonasse por ela, sem precisar do meu olhar embaçado de afeto. Mas, antes de amá-la, sua beleza não me era aparente, sendo eu então o bom jovem cego para o que não era óbvio.
Conheci-a numa mesa de bar, amiga de amigos, num show do Jaloo no Circo Voador. A primeira vez em que lembrei seu nome foi no carnaval, quando nos esbarramos na bandinha de Ipanema.
Malu. Seu apelido era fácil em meus lábios naquele dia, sua pele, açúcar caramelizado sob o sol de fevereiro, com gotas de suor salgado que me tentavam mais que a água fresca vendida pelos ambulantes.
Foi paixão rápida. Pele, verão, sexo, suor. Foi amor lento. Beijos, manhãs, toques, hábitos.
Amar Malu foi um hábito. Um vício que não previ e não tive problemas para me entregar. Amá-la era amar a textura dos anéis dos seus cabelos, era arrepio, ruído do lençol na pele, grãos de areia no chão do box do banheiro. Era seu perfume, sua presença em minha casa e corpo, os intervalos de sua ausência, as horas (e os minutos e os segundos) até que eu a tivesse em meus braços de novo.
Era amor como primeiro amor, mesmo que não fosse. Era para sempre, mesmo que tenha acabado.
Hoje somos estranhos que se encontram ocasionalmente, sem saber o que fazer com a memória de uma intimidade que já não existe. Com lembranças que quase não parecem nos pertencer, que me fazem ter vergonha de lembrar do seu corpo nu sobre o meu, como esteve tantas vezes, como se estivesse violando seu direito de, hoje, não pertencer a mim.
Talvez esteja. Mas as memórias ainda estão marcadas em mim como uma tatuagem, sua tinta mesclada em minha pele para sempre. E não sei mais o que fazer com elas.
Com os dias e as semanas, os meses e os anos, era como se as memórias impossíveis de apagar fossem engavetadas, feito álbuns de fotos antigas que você guarda numa caixa no fundo do armário. Você quase se esquece delas, lá, escondidas, longe do seu olhar, do seu dia a dia. E segue em frente. Eu segui. Sem ela.
Eventualmente, Malu ficou em preto e branco, acinzentada. Formei-me, fiz um mochilão pela Ásia, toquei a Muralha da China e tomei vinho de arroz. Preocupei-me por não conseguir emprego, voltei para a casa dos meus pais, arrumei um emprego, uma namorada e um apartamento. Me apaixonei. Me desapaixonei. Transei com outras mulheres e com um homem também. Amei. Achei que amava. Amei de verdade. Amei como nunca amei ninguém, embora possa dizer isso de todas que amei. Nunca encontrei outra Malu, mas encontrei Beatriz, Cecília e Luciana. Encontrei mulheres que amei por uma noite e cujos nomes nunca nem me foram ditos, embora também as lembranças delas nunca tenham me deixado completamente.
Em meu álbum escondido, outras fotos foram adicionadas, em meu corpo, novas tatuagens, como tenho certeza que eu também fui guardado dentro de outros armários, perfurado em outras peles. Fui feliz, mas nunca o suficiente. Sofri, mas nunca demais. Nunca triste o bastante para ser poeta nem feliz o suficiente para ser tolo. Segui. Sem ela.
Meu mundo continuou girando, eu continuei mudando, a vida continuou sendo o que a vida é. Impiedosa.
E então eu voltei a vê-la. Num supermercado em Copacabana enquanto eu comprava um vinho para levar à casa de um amigo e ela fazia suas compras do mês. Seus cabelos estavam mais curtos, sua pele mais clara (era inverno), seus olhos, o de uma estranha.
Não foi como se todas as nossas lembranças voltassem a mim num segundo, foi como se sempre estivessem estado ali, atrás dos meus olhos, a primeira em meus pensamentos. Malu não voltou à cor aos poucos, ela sempre foi um arco íris. As fotos escondidas eram como um filme que nunca havia saído da minha cabeça. Seu calor, sua pele, seu perfume, seus cabelos. Entranhados, enterrados, presos em mim. Em meus pensamentos, minha pele, meus músculos, meus vasos sanguíneos.
Malu sorriu para mim.
– Quanto tempo – disse. – Você não mudou nada.
– Já eu quase não a reconheci.
– O que tem feito?
– Trabalhando muito.
– Eu também.
E as palavras eram tão difíceis, não insinceras, mas rígidas, duras, estrangulando nossas gargantas por um momento, escondendo as que realmente gostaríamos de dizer. E de ouvir.
Por um momento, os olhos de Malu eram novamente da cor daquele carnaval, daquelas tardes suadas, dos ônibus lotados, das itaipavas geladas, daquele mar, do sal e dos lençóis desarrumados. Por um momento, aquela era a Malu que conheci, que beijei, cujo corpo aprendi a percorrer sem mapa, com os olhos, as mãos, a língua. A Malu cujo sorriso forçava outro de meus lábios e cujas conversas de madrugada eram confissões roubadas de um tempo roubado de um fevereiro que nunca esqueci. Mesmo em preto e branco.
E então:
– Preciso ir, estou cheia de coisas para fazer hoje.
– Tudo bem, eu também preciso ir.
– Nos esbarramos por aí.
– Podemos nos encontrar pra conversar.
– Claro. Foi bom te ver.
Foi bom te ver.
As palavras dela ficaram em minha mente muito depois de perdê-la de vista na aglomeração do supermercado.
Foi bom te ver.
Podia muito bem ter sido: foi bom te encontrar. Foi bom te conhecer. Foi bom te beijar. Foi bom te abraçar. Foi bom te amar. Foi bom te perder.
Te deixar ir. Te esquecer. Não, esquecer não, esquecer nunca. Foi bom te adormecer no fundo daquele armário, num recanto escondido onde os sentimentos são guardados.
Agora ela voltava a arder em minha pele como ardera da última vez em que a tinha visto. Voltava agora o hábito de pensar nela, de vê-la em todas as cores, em todas as esquinas e em todos os rostos. E voltava agora o novo processo de acinzentá-la, como palavras escritas à lápis num papel, que com o tempo vão se apagando, mas cuja marca, se você escrever com força, continua lá.
Com o tempo, ela faria seu caminho de volta para os cantos escondidos dos meus pensamentos, naquele limbo onde vivem os sentimentos vividos e sentidos, mas perdidos. Mas, no momento, eu voltava a vivê-la em nossas lembranças.
Comprei o vinho e fui para a casa do meu amigo. O tempo todo pensando nela, o tempo todo repetindo seu nome.
0 comments